Farol

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Aviso aos navegantes

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Pé na roça

_______________________________________para Cantilde

Vi luz antes de agosto de 1954,
menino com pé na roça,
não fui menino de engenho,
fui um guri suburbano,
crescido no Rocha e na Tijuca;

- mas o avô fazendeiro,
trazia um passado distante
de nascido em 1870, e de
ser representante do velho
pensamento liberal republicano -;

roça e cidade eram meus lugares,
em mim os paralelepípedos
das ruas e as picadas dos matos
eram caminhos que me acompahavam,
como cheiro do curral e o mau
cheiro da merenda da escola;

Cantilde, a negra azeviche de coque,
cozinhava no fogão a lenha
as carnes de porco, gado ou galinha,
e a cocção era lenta como
nunca era rápido o almoço resultante:

as verduras e os legumes
vinham da horta quase à soleira da casa,
do chiqueiro tudo se aproveitava
do porco, e as banhas fritavam ovo.

a couve nas mãos de Cantilde
eram cortadas por micrótomo,
e os fios da verdura lembravam
amontoados de algas verdes,
suaves e tão macias de derreter
na saliva, sem o esforço dos dentes.

Meu avô morreu em 1964,
aos noventa e quatro anos,
quando contavam dois lustros
os tempos dos meus desenganos.

Cantilde também viveu muito,
fez tanto fubá com colher de pau,
tanto biscoito de polvilho,
deu tanta prova a moleque faminto,
que nas refeições a relembro
mexendo angu quentinho na panela,

sobre o qual meu coração se aquece,
alimentando a lembrança do tempo
feliz ao longo do casarão largo
da minha infância e fase pueril,

que passaram e sempre passarão como
continua a passar o longo curso daquele rio,
ao fundo do pomar, onde se erguiam
as palmeiras que viram meu pai crescer,
que eram quatro, hoje são só três,
porque uma caiu antes de um agosto,
mas não quero me lembrar de quando
Cantilde passou a cozinhar nas estrelas.

hoje já contam onze lustros o tempo
dos meus desenganos; sou feliz
porque contemplado por um sossego no peito,
sempre penso no futuro com um
olhar no passado, e se estou desenganado,
no desencanto encontro o canto
real e forte que embala minha lira.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Travessia

ao meu irmão Alberto Daflon,filho


Enchente pós-chuva, na pulsante e ávida enchente;
menino, sim, era menino, e quis a travessia.

O rio sem margens, que comia grama, era o rio
barrento da roça de caminho barrento,
onde queria entrar sem saber para ir onde.

Os pés do primo e do irmão – o rio lambia-lhes os pés –;
meus pés buscavam a margem submersa; em meus pés
passos, com água às canelas, continuavam passos.

Surdo aos gritos, de pare! Pare! Pare! Continuava surdo.

Cobra, o rio me hipnotizava, como à rã hipnotiza a cobra.
Redemoinho, a cobra se contraía no redemoinho.
Submerso, caíra enroscado junto à margem do rio submerso.

Corpo sem reação, decidida cobra me apertava o corpo.
Embora, no fundo, no fundo, o rio quisesse me levar embora,
cobra me queria morto, na fome da sua fome de cobra.

Desenroscado o braço, levantei-o do corpo franzino enroscado.
Pelo punho meu irmão arrancou-me do redemoinho.

Na enchente pós-chuva, na pulsante e ávida enchente.
Menino, sim, era menino; e ainda hoje é cedo para travessia.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O pai do homem

quando o menino é o pai do homem,
nem imagino qual será seu nome;
talvez use apelido adolescente
sem sequer ter lido que se tornou gente.

quando o menino é o pai do adulto
cresce fescenino, às vezes inculto;
às vezes se agarra na onda de anágua
que chega à garra com salgada água.

quando o menino é o pai do órfão
porque o destino não lhe deu a mão;
talvez cresça triste ou lute bastante,
se pai não existe em quem ser confiante?

e ao menino lírico da terna infância
de aspecto rico em qualquer instância,
restará a luta de se tornar maduro
que ninguém desfruta homem inseguro.

ou de ser seguro em vida bandida
na hora que pára quando há perigo,
de ver no espelho infância escondida
por não ter saído do seu próprio umbigo.

mas quando o homem é pai do menino
das lembranças some este pequenino;
ser homem o impele ao esquecimento
e a ter sob pele pó de amor, fermento.

quando homem enfim é pai do menino
este querubim morre e bate o sino;
não por triste luto, morrer é da alma,
que no estado bruto no homem se acalma;

quando o homem manda e o menino cala,
nasce uma demanda de ter outra fala,
ser pai de si mesmo ao pai dá descanso
e o pai se alegra ao ver riacho manso.

o menino morre, toda cede cessa,
o gozo escorre sem nenhuma pressa;
a mulher feliz vai querer menino,
e o homem diz: já fui pequenino!

se limite há, o mundo é imenso
e no lago fundo há a superfície,
também fui menino, sinto, paro e penso,
que a infância é elemento físsil.

O pai do homem

quando o menino é o pai do homem,
nem imagino qual será seu nome;
talvez use apelido adolescente
sem sequer ter lido que se tornou gente.

quando o menino é o pai do adulto
cresce fescenino, às vezes inculto;
às vezes se agarra na onda de anágua
que chega à garra com salgada água.

quando o menino é o pai do órfão
porque o destino não lhe deu a mão;
talvez cresça triste ou lute bastante,
se pai não existe em quem ser confiante?

e ao menino lírico da terna infância
de aspecto rico em qualquer instância,
restará a luta de se tornar maduro
que ninguém desfruta homem inseguro.

ou de ser seguro em vida bandida
na hora que pára quando há perigo,
de ver no espelho infância escondida
por não ter saído do seu próprio umbigo.

mas quando o homem é pai do menino
das lembranças some este pequenino;
ser homem o impele ao esquecimento
e a ter sob pele pó de amor, fermento.

quando homem enfim é pai do menino
este querubim morre e bate o sino;
não por triste luto, morrer é da alma,
que no estado bruto no homem se acalma;

quando o homem manda e o menino cala,
nasce uma demanda de ter outra fala,
ser pai de si mesmo ao pai dá descanso
e o pai se alegra ao ver riacho manso.

o menino morre, toda cede cessa,
o gozo escorre sem nenhuma pressa;
a mulher feliz vai querer menino,
e o homem diz: já fui pequenino!

se limite há, o mundo é imenso
e no lago fundo há a superfície,
também fui menino, sinto, paro e penso,
que a infância é elemento físsil.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Descanso póstero, que o póstumo não quero.

Só faltam quatro férias, nesses anos de labuta,
para que possa ir jogar sinuca à tarde
e andar de pijama o dia inteiro,
sem esquentar cabeça com dinheiro,
quando na churrasqueira outra carne arde,
porque com algum bom senso levei vida astuta.

Não quererei, então, tormento nem êxtase,
nem pressa, nem vagar de velho com Alzheimer.

Doido na juventude, saudável na velhice,
soube enlouquecer, antes de ficar louco.

Não quero trabalhar,
não quero ser mandado.
Não quero bom combate,
nem ser mais enganado.

- Só quero descansar quando estiver cansado.

E se me perguntarem se não fico cansado,
ou se nunca me canso de tanto descanso;
responderei tranquilo, e deslavadamente:

- Se tanto descanso me cansa, então descanso!

domingo, 29 de agosto de 2010

Mar ignóbil

o mar ignoto e ignóbil

invadiu as planícies e curvas

que bordam teus seios


os efluentes dos terminais,

o óleo dos barcos e navios

não eram apenas do viajor


nem do improvável porto

bafejado por brumas frias

ou hálito quente de verão;


mas impurezas são bem vindas,

amor não é depuração d’água

das ondas espumantes da saliva.

Mar dizível

Se a quilha do navio deixar trilha, o mar é dizível
nas velas desfraldadas dos tímpanos abertos aos ventos,
ventanias sibilantes das alvas e crepúsculos ou tempestades,
(mesmo sob a hora perpendicular do sol),
quando os seres abissais refugiam-se em maiores profundezas.
E o espírito goliardesco dos marujos está atento aos riscos,
aos riscos que a quilha do navio abre no mar;
no mar que não quer a demanda do navio ao porto.
O mar que engole com suas línguas todos os segredos;
o mar que aprisiona as sereias em enseadas e pedras;
o mar dissimulado das calmarias e do tédio;
o mar que invade grutas onde há a solidão dos náufragos;
o mar da ilha de Tortuga mergulhada em sangue,
o mar das pilhagens de navios por piratas da Somália,
o mar onde as cicatrizes abertas pela quilha se fecham
na esteira de espuma da popa, onde não há lanternas,
mas há o convés mais largo,
não infenso a solidão dos marujos e ao desespero.
Local que só interessa ao astrolábio pela existência do leme,
quando o horizonte é redondo e não há terra à vista.
Quando no passadiço o timoneiro importa igual ao Comandante
e cada membro da tripulação é uma célula viva da nave de ferro.
De fato, sem o fiel da aguada não há água doce,
e a água do lastro não é potável para ser bebida.
Sem o Contramestre o Oficial não descansa e a maruja
dorme no posto, na hora errada, no mar errante dos naufrágios torpes,
mesmo antes de serem lançadas espias aos cabeços dos portos
para surtar o navio depois do aviso apitado da ramonagem,
que alegra as mulheres das urbes portuárias e as do cais do retorno,
antes que a caldeira se apague e o navio durma um sonho,
no sono dos marujos ratos de bordo e dos que baixam terra,
na hora em que a noite é lançada como tarrafa sobre o oceano.